Reino Pécala Rae (*)
Há cerca de 12 mil anos, a Humanidade – estimada em mais ou
menos 10 milhões de habitantes – já havia deixado a África e, em
pequenos bandos, de até 100 indivíduos, ocupava todos os continentes, com exceção da Antártida. Nômades, sempre caminhando em busca de alimento. Predadores: acampados em determinado local, consumiam todo alimento disponível, num raio de meia dúzia quilômetros e eram obrigados a mudar de pousada.
Vivia-se sob grande tensão na mudança de local porque não havia garantia de alimento no seguinte. Supõe-se que sobreviviam por menos de 30 anos, baixo índice de natalidade, vocabulário com menos de 1000 palavras. Idade da Pedra. Uns autores defendem a tese de que o Homo Sapiens, Sapiens teria já 180 mil anos. Outros, dão por menos, 150 mil, para terceiros, existimos há 120 mil anos. Durante todo esse largo tempo, o progresso cultural e tecnológico foi muito pequeno, justamente pela condição de nômades.
Saindo da África, ao passar pelo Crescente Fértil, lá estavam
disponíveis condições favoráveis à invenção da agricultura e da pecuária. Há muito, tinham aprendido o valor dos grãos e ali, no Oriente Médio, estavam campos nativos de Triticum Aestivum Vulgaris. A cada ano, na safra, colhiam-se grãos, principalmente trigo.
Aprenderam logo a melhorar o rendimento do cereal, limpando o campo, o que aumentava a produção e facilitava a colheita. Deste ponto, para perceber que uma semente, caída no chão, resultava em outra planta, não decorreram muitos séculos. Acontece que não bastava lançar a semente no chão, porque as aves as roubavam. Então, alguém, com um pedaço de pau, fez um risco no chão, colocou a semente e passou o pé, escondendo-a da passarada. Estava inventada a agricultura, basicamente a partir da triticultura. E esta se espalhou em torno do Mar Mediterrâneo.
Ao transpor, com a agropecuária, o limite da vida do caçador/coletor, criaram-se cidades, sofisticou-se o pensamento, cresceu o vocabulário. A Humanidade foi abandonando o animismo, o inicial estágio de religiosidade, passando primeiro pelo politeísmo e, a seguir, chegamos ao monoteísmo. Não por coincidência, na mesma pequena área de onde irradiou a triticultura, o Crescente Fértil, foram instituídos o Judaísmo, o Cristianismo e o Islamismo. Não por coincidência.
Sem tomar conhecimento da invenção da triticultura, talvez mil
anos depois, chineses inventaram a rizicultura. Muito, muito tempo depois, na Mesoamérica, civilizações pré-colombianas inventaram a cultura do milho. Nos Andes, a indiada aprendeu a plantar batatas. Há controvérsias se os nossos índios inventaram a agricultura da mandioca ou se receberam informações dos Andes.
Há meia dúzia de mil anos, os sumérios, na parte oriental do Crescente Fértil, inventaram a roda, o arado e a irrigação, usando os rios Tigre e Eufrates. Obviamente, com tal tecnologia, multiplicaram a produtividade De maneira que, na entressafra, quando povos vizinhos sofriam escassez de alimentos, os sumérios dispunham de grandes estoques de trigo, o que os levou a inventar o comércio internacional, a primeira globalização. Cidades cresceram porque cada agricultor produzia
muito mais do que ele próprio consumia. Ur, citada na Bíblia, passou de 50 mil habitantes. Basicamente para controlar o comércio, os sumérios desenvolveram a língua escrita e passamos da Pré-História para a História. Por causa do trigo.
Em seguida, os Chineses, plantando arroz irrigado, inventaram a sua língua escrita. Os Egípcios, aproveitando a produtividade decorrente das cheias do Nilo, criaram os hieróglifos. Sempre para controlar o comércio do excedente disponível de alimentos.
Impõe-se observar o que ocorreu com os povos alimentados com
trigo, arroz, milho, batata e mandioca. Quais as Civilizações, depois dos Sumérios, que lideraram o caminhar da Humanidade? Assírios, babilônios, egípcios, gregos, romanos, árabes e europeus. Emerge importantíssima coincidência, todos alimentados predominantemente com trigo. E por que? Porque o trigo possui um leque maior de proteínas essenciais e melhores carboidratos. Sustentar uma população com melhor alimento, por séculos, resulta indivíduos mais fortes e saudáveis, física e
mentalmente. Não será necessário dissertar sobre proteínas e
carboidrato de trigo; basta ver o resultado, do ponto de vista da evolução da Humanidade: Civilizações vencedoras.
Lendo, por exemplo, Fernand Braudel – “Civilização Material, Economia e Capitalismo – Séculos XV – XVIII”, em “As Estruturas do Cotidiano”,
Capítulo 2, “O Pão de Cada Dia” lê-se: “Entre o século XV e o século XVIII, a alimentação humana consiste, essencialmente, em alimentos vegetais. (…) Por razões bem simples: com a mesma superfície, basta que uma economia se decida segundo a aritmética das calorias para que a agricultura leve a melhor sobre a pecuária; bem ou mal, alimenta dez, vinte vezes mais pessoas do que a sua rival.”.
Se a mesa dos ricos, dos nobres, era farta e variada, a população em geral, pela produtividade dos grãos e custo mais baixo, alimentava-se quase que exclusivamente deles. Até recentemente, por exemplo, século XVIII, franceses, italianos e outros, comiam pão, comiam mingau, de trigo.
Assim, será razoável comparar o desempenho de povos alimentados com trigo, arroz, milho, batata e mandioca. O trigo leva demasiada vantagem.
Do cão original, segundo autores, dispomos agora de centenas de raças. Os bancos de germoplasma, distinguindo hoje centenas de milhares de variedades de trigo, mostram o resultado de uma evolução de milhares de anos. Segundo autores, a primeira seleção, involuntária, foi ligada ao desgrame.
Quando madura, a espiga liberava os grãos, que caíam no chão, mas era mais fácil pegar a espiga do que catar o grão no solo. Assim foram selecionadas variedades nas quais o grão, depois de maduro, não se soltava da espiga. Simultaneamente, os que colhiam, preferiam as espigas maiores. E o trigo plantado, lentamente, passou a ter espigas maiores e menos sujeitas a desgrame.
Quando a Natureza cria um modo de alimentar recém-nascidos ou recém-germinados, a eles, novas plantas e novos animais, destina alimentos muito ricos. Todos sabem que um ovo, afora a casca que protege o conteúdo, está composto por embrião, clara e gema. Colocando-se um ovo de galinha para chocar, em pouco tempo o pintinho, já completo, bica o ovo, livrando-se da casca. De onde saíram os “ingredientes” que formaram o pinto? De onde veio “matéria-prima” para construir cérebro, esqueleto, órgãos, aparelhos circulatório, digestivo, respiratório e nervoso? Evidentemente, da gema e da clara. Então, os ovos são alimentos muito completos. Óbvio. O que não impediu que os ovos fossem execrados e retirados de uma lista de recomendados. Nenhuma base científica, apenas crenças, modismos. Felizmente, o valor dos ovos já foi oficialmente restaurado.
Para os mamíferos, temos o leite. Podemos alimentar um bebê por mais de um ano, unicamente com leite materno. Ele cresce, saudável, provavelmente, melhor do que recebendo outros alimentos. Diz-se que o leite é um alimento completo. E assim são os grãos. Um grão de trigo compõe-se de casca tegumento), gérmen (equivalente ao embrião, a partir do qual a planta será desenvolvida) e endosperma, o alimento inicial do gérmen, que, separado da casca e do gérmen e moído, vem a ser a farinha de trigo. Como no caso da clara e gema e no do leite, é o endosperma que alimenta a nova planta. Para alguns grãos, será bastante umedecê-los que, logo, criam-se raízes e caules, alimentados pelo endosperma. Entre as crenças, sem fundamento, que se propagam, há a de que farinha “refinada” faz mal. Como se fosse um tratamento químico, que introduzisse na farinha algum elemento nocivo. Um absurdo. Farinha de trigo não se “refina”. Apenas o grão é moído e, por simples peneiramento, separa-se o que não é endosperma, isto é, casca e gérmen. Separa-se o tegumento, para melhorar o desempenho da farinha na produção de derivados – pães, massas, biscoitos, etc..
Em relação a outros grãos, o trigo distingue-se pelo glúten. A cevada possui uma pequena proporção de glúten, comparada à do trigo, e os demais cereais praticamente não têm glúten. As proteínas do trigo são classificadas, grosso modo, em solúveis em água – imensa maioria – e as insolúveis. Estas se dividem em gluteninas e gliadinas. Fechando a mão em torno de um punhado de farinha de trigo e colocando-a sob uma torneira, com um fio de água, é possível dissolver a parcela solúvel – carboidratos e proteínas – que vão escorrendo para o ralo da pia. Ao final, restará na mão uma massa viscosa, assemelhada à goma de mascar, de cor amarelada. É o glúten, o maravilhoso glúten. Vejamos para que serve.
Adicionando água e fermento a qualquer farinha amilácea, de milho, mandioca, centeio ou outra, a massa cresce pela reação, que produz gás carbônico. Acontece que, ao ser levada ao forno, o gás escapa e o pão, ou bolo, perde volume, achatando-se. Perde a fofura, característica dos derivados do trigo. Já a farinha de trigo, com as gluteninas e gliadinas espalhadas pela farinha, quando fermenta, faz com que essas proteínas, elásticas, alonguem-se. Levada tal massa ao forno, o glúten perde a elasticidade e sustenta a massa, não deixando “solar”. Uma maravilha. Quem quiser fazer um bom pão de, por exemplo, centeio, deverá adicionar um pouco de farinha de trigo, para melhorar a fofura, a palatabilidade do pão.
Desde o tempo dos sumérios a farinha de trigo tem glúten. Ou
melhor, possui gluteninas e gliadinas que, com água, formam o glúten.
Nunca houve nenhuma mudança no sentido de alterar suas
características. Acontece que o teor dessas proteínas muda um pouco, de variedade para variedade de trigo. Os pesquisadores, chamados de melhoristas, vão cruzando variedades, objetivando obter trigos mais produtivos ou menos exigentes em fertilidade do solo, menos suscetíveis a doenças e pragas e mais adequados aos produtos a serem fabricados.
Norman Borlaug, Diretor do CIMMYT
– Centro Internacional de Mejoramento de Maíz y Trigo, México, dirigiu a criação de variedades mais resistentes e produtivas, em solos menos adequados ao trigo, que dobraram a produção da Índia, do Paquistão, do Brasil e permitiram a sua produção em outros países africanos. Por isso, por sua Revolução Verde,recebeu o Prêmio Nobel da Paz. Por esse tempo não circulavam boatos descabidos sobre glúten, hoje demonizados pela mídia.
Felizmente, ainda não apareceu um detrator do glúten a alertar o católico para o “perigo” de receber a hóstia sagrada, por causa do seu glúten…
Os alimentos despertam nos serem humanos um interesse
desproporcional, que os levam a crenças que, depois de desmascaradas, são substituídas por outras. Não existe nenhuma pesquisa comparando as diferenças genéticas do trigo consumido pelos sumérios e o que hoje plantamos e colhemos. Muito menos, nunca se descobriu qualquer diferença que seja desfavorável ao ser humano. Também não há pesquisa fazendo tal comparação entre o glúten atual e o do tempo do Rei Sol, Luis
XIV, na segunda metade do século XIV. Alguém supõe um perigo e pessoas sugestionáveis se preocupam. Depois, o assunto morre e nasce outra crença.
Dada a imensidão de células diferentes no corpo humano, que necessitam ser substituídas continuamente e que requerem diferentes “matérias-primas”, entende-se facilmente que a alimentação deve ser variada. Por outro lado, na quantidade apenas necessária. Assim, “deve-se comer de tudo, um pouquinho”. A quantidade deve ser restringida à manutenção do peso saudável. Os excessos não são benfazejos, para qualquer item.
A seleção, com vistas à variedade, deve atentar para os alimentos mais completos, como os citados, leite, ovos, grãos. Sim, atenção nas vitaminas e sais minerais. Para começar, alimentos de todas as cores. De qualquer forma, o pão, o macarrão não são “catalisadores” de obesidade. O seu consumo, como no caso de quase todos outros alimentos, deve ser restringido ao nível de manutenção de peso saudável.
Na Ásia, o arroz predominou. China e Japão consumiam-no de modo intensivo, diante da escassez de carnes e outra fontes de proteínas. Com o passar dos séculos, distinguíamos seus habitantes pela menor estatura. Eis que, ao término desta última, a Segunda Grande Guerra, a intervenção americana no Japão para lá levou o trigo, subsidiando-o, inclusive. Já a China tornou-se o maior produtor mundial de trigo. Em poucas décadas, China e Japão já podem formar equipes de vôlei e basquete, que requerem atletas de estatura elevada…
A comida, com a civilização, ao lado da obrigação imposta pelo instinto de sobrevivência, transmutou a refeição para um momento de prazer. O sabor é buscado, com requisitos cada vez mais sofisticados. A cada ano, milhões de turistas visitam a França, Paris. Todos reconhecem a qualidade da culinária francesa. Não é necessário, entretanto, buscar o prazer em caros restaurantes. Quem, pela primeira, aprecia a delícia de uma baguette ou de um croissant, não esquece. E é impossível fabricá-los com farinha sem glúten.
Na culinária, a farinha de trigo é um ingrediente fundamental na elaboração de milhares de pratos, doces e salgados, com
o objetivo de melhorar sua apresentação e palatabilidade, a partir de favorável custo/benefício. A farinha de trigo é barata!
O camarão é considerado uma iguaria. Caro porque escasso. Certas pessoas, entretanto, não podem comer camarão. Alérgicas. Correriam riscos se se descuidassem. O camarão não tem culpa, não é defeituoso e nem modificado geneticamente. (A moda consiste em culpar mudanças genéticas.) Apenas uns são alérgicos. Ao camarão e a outros crustáceos.
O leite, todos sabem, é um alimento riquíssimo, mas algumas pessoas, uma pequena fração da população, é intolerante à lactose. Ingerindo leite logo passam mal.
O problema não está no leite, mas na dificuldade do intolerante. Algo como 1% da população desenvolve uma intolerância a glúten, inflama-se o intestino. São chamados “celíacos” ou portadores de doença celíaca. Novamente, o problema não está no trigo, no glúten, mas na anormalidade de algumas pessoas.
A grande dificuldade em desfazer as lendas em torno do glúten é que é quase impossível provar que não existe o que não existe. Compete ao acusador o ônus da prova e os que atribuem malefícios ao glúten deveriam fazer a prova, o que nunca aconteceu. A onda contra o glúten passará, como outras se foram.
(*) Assessor institucional da Abitrigo
(reinorae@uol.com.br)